O Joãozinho de nossa história é um moleque muito pobre que mora numa
favela sobre palafitas espetadas em um vasto mangue. Nosso Joãozinho só
vai à escola quando sabe que vai ser distribuída merenda, uma das poucas razões
que ele sente para ir à escola. Do fundo da miséria em que vive, Joãozinho pode
ver bem próximo algumas das grandes conquistas de nossa civilização em vias de
desenvolvimento (para alguns). Dali de sua favela, ele pode ver de perto uma
das grandes universidades - onde se cultiva a inteligência e se conquista o
conhecimento -, a UFRJ. Naturalmente esse conhecimento e a cultura ali
cultivados nada têm a ver com o Joãozinho e outros tantos milhões de Joãozinhos
pelo Brasil afora.
Além
de perambular por toda a cidade, Joãozinho costuma caminhar pelas pistas da
Linha Vermelha, de onde pode ver o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.
Isso certamente é o que mais fascina os olhos de Joãozinho. Aqueles
"grandes pássaros" de metal que sobem imponentes com um ruído de rachar
os céus. Joãozinho, com seu olhar curioso e sonhador acompanha aqueles “grandes
pássaros” até que, diminuindo de tamanho, desaparecem no céu. Talvez por
frequentar pouco a escola, por gostar de observar os aviões e o mundo que o
rodeia, o Joãozinho seja um sobrevivente de nosso sistema educacional.
Joãozinho ainda não perdeu aquela curiosidade de todas as crianças, aquela
vontade de saber o “como” e o “porquê”, especialmente em relação às coisas da
natureza. Essa curiosidade e o gosto de saber se vão extinguindo em geral, com
a frequência à escola. Não há curiosidade que aguente aquela “decoreba” sobre o
corpo humano, por exemplo.
Sabendo por seus colegas que nesse dia haveria merenda, Joãozinho resolve ir à
escola. Nesse dia sua professora se dispunha a dar uma aula de ciências, coisa
que o Joãozinho gostava. A professora havia dito que nesse dia iria falar sobre
coisas como o Sol, a Terra e seus movimentos, verão, inverno etc.
A professora começa por explicar que:
- O verão é o tempo do calor;
- O inverno é o tempo do frio;
- A primavera é o tempo das flores e;
- O outono é o tempo em que as folhas ficam amarelas e caem.
Em
sua favela no Rio de Janeiro, Joãozinho conhece tempo de calor e de mais calor
ainda. As flores da primavera e as folhas amarelas que caem ficam por conta de
acreditar. Num clima tropical como o do Rio de Janeiro, Joãozinho não viu nem
um tempo de flores. As flores por aqui existem ou não, quase
independentemente da época do ano. Mas Joãozinho, observador e curioso, resolve
perguntar por que acontecem ou devem acontecer tais coisas. A professora
resolve então dar a explicação:
- Eu já disse a vocês, numa aula anterior que a Terra é uma grande bola
e que essa bola está rodando sobre si mesma. É sua rotação que provoca os dias
e as noites. Acontece que quando a Terra está girando ela também está fazendo
uma grande volta ao redor do Sol. Essa volta se faz em um ano. O caminho ou
órbita que a Terra percorre ao redor do Sol é uma curva alongada chamada
elipse. Além de essa curva ser achatada ou alongada, o Sol não está no centro.
Isso quer dizer que em seu movimento, a Terra às vezes passa perto, às vezes
passa longe do Sol.
- Quando passa mais perto do Sol é mais quente: é Verão.
- Quando passa mais longe do Sol recebe menos calor: é Inverno.
Os
olhos de Joãozinho brilhavam de curiosidade diante de um assunto novo e tão
interessante.
- Professora, a senhora não disse antes que a Terra é uma bola e que
está girando enquanto faz a volta ao redor do Sol?
- Sim, eu disse, responde a professora com segurança.
- Mas se a Terra é uma bola e está girando quase todo dia perto do sol,
não deve ser verão em toda a Terra?
- É Joãozinho, é isso mesmo.
- Então é mesmo verão em todo o lugar e inverno em todo lugar ao mesmo
tempo, professora?
- Acho que é Joãozinho, mas vamos mudar de assunto menino.
A
essa altura a professora já não se sentia tão segura do que havia dito. A
insistência natural do Joãozinho já começava a provocar certa insegurança na
professora.
- Mas, professora, insiste o garoto. Enquanto a gente está ensaiando na
escola de samba, na época do Natal, a gente sente o maior calor, não é mesmo?
- É mesmo Joãozinho.
- Então nesse tempo é verão aqui?
- É Joãozinho.
- E o Papai Noel no meio da neve com roupas de frio e botas. A gente vê
nas vitrines até as árvores com algodão. Não é para imitar a
neve?
- É, Joãozinho. Na Terra de Papai Noel faz frio.
- Então na Terra do Papai Noel, no Natal, faz frio?
- Faz, Joãozinho.
- Mas então tem frio e calor ao mesmo tempo? Quer dizer que existe verão
e inverno ao mesmo tempo?
- É Joãozinho, mas vamos mudar de assunto. Você já está atrapalhando a
aula e eu tenho um programa a cumprir.
Mas
Joãozinho ainda não havia sido “domado” pela escola. Ele não havia ainda
perdido o hábito e a iniciativa de fazer perguntas, e querer entender as
coisas. Por isso, apesar do jeito visivelmente contrariado da professora, ele
insiste.
- Professora, como é que pode ser verão e inverno ao mesmo tempo em
lugares diferentes, se a Terra que é uma bola, deve estar perto ou longe? Uma
das duas coisas não está errada?
- Como você se atreve, Joãozinho, a dizer que a professora está errada?
Quem andou pondo essas idéias em sua cabeça?
- Ninguém não, professora. Eu só “tava” pensando. Se tem verão e inverno
ao mesmo tempo, então isso não pode acontecer porque a Terra “tá” perto ou “tá”
longe do Sol? Não é mesmo, professora?
A
professora, já irritada com a insistência atrevida do menino, assume uma
postura de autoridade científica:
- Está nos livros que a Terra descreve uma curva que se chama elipse ao
redor do Sol, que essa ocupa um dos focos e, portanto, ela se aproxima ou se
afasta do Sol. Logo, deve ser por isso que existe verão e inverno.
Sem
se dar conta da irritação da professora nosso Joãozinho lembra-se da sua
experiência diária e acrescenta:
- Professora, a melhor coisa que a gente tem aqui na favela é poder ver
avião o dia inteiro.
- E daí, Joãozinho? O que isso tem a ver com verão e inverno?
- Sabe professora, eu achei que tem. A gente sabe que um avião “tá”
chegando perto quando ele vai ficando maior. Quando ele vai ficando pequeno é
porque ele está ficando mais longe.
- E o que isso tem a ver com a órbita da Terra, Joãozinho?
- É que eu achei que se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente
devia ver ele maior. Quando a Terra estivesse mais longe do Sol, ele deveria
parecer menor, não é professora?
- E daí menino?
- A gente vê o Sol sempre do mesmo tamanho. Isso não quer dizer que ele
“tá” sempre na mesma distância? Então verão e inverno não acontecem por causa
da distância da Terra ao Sol!
- Como você se atreve a contradizer sua professora, Joãozinho? Quem anda
pondo essas “minhocas” na sua cabeça? Faz quinze anos que eu sou professora. É
a primeira vez que alguém quer mostrar que a professora está errada.
A
essa altura, a classe se havia tumultuado. Um grupo de outros garotos já havia
percebido a lógica arrasadora do que o Joãozinho dissera. Alguns continuavam
indiferentes. Outros aproveitaram a confusão para aumentá-la. A professora
havia perdido o controle da classe e já não conseguia impedir a bagunça nem com
ameaças de repressão.
Em meio àquela confusão tocou o sinal para o fim da aula, “salvando” a
professora de um caos maior. Não houve aparentemente nenhuma definição de
vencedores e vencidos nesse confronto. Indo para casa, a professora ainda
agitada e contrariada se lembrava do Joãozinho que lhe estragara a aula e o
dia. Além de pôr em dúvida o que ela afirmara, o Joãozinho ainda deu um “mau
exemplo”. Joãozinho com seus argumentos ingênuos mas lógicos, despertou muitos
para o seu lado.
- Imagine se a moda pega, pensa a professora. O pior é que não me
ocorreu qualquer argumento que pudesse "enfrentar" a argumentação do
garoto.
- Mas foi assim que me ensinaram. E é assim mesmo que eu ensino, pensa a
professora. Faz tantos anos que eu dou a mesma aula sobre este mesmo assunto!
À
noite, mais calma, a professora pensa com os seus botões:
- Os argumentos de Joãozinho foram tão claros e ingênuos! Se o inverno e
o verão fossem provocados pelo maior ou menor afastamento da Terra em relação
ao Sol, deveria ser inverno ou verão em toda a Terra. Eu soube que enquanto é
verão em um hemisfério, é inverno no outro. Então tem mesmo razão o Joãozinho.
Não pode ser esta a causa do calor e do frio na Terra. Também é absolutamente
claro e lógico que se a Terra se aproxima e se afasta do Sol, este deveria
mudar de tamanho aparente. Deveria ser maior quando mais próximo e menor quando
mais distante.
- Como eu não
havia pensado nisto? Como posso ter “aprendido” coisas tão evidentemente
erradas?
- Como não me ocorreu alguma dúvida sobre isso?
- Como posso eu estar durante tantos anos “ensinando” uma coisa que eu
julgava ciência, e que pode ser totalmente demolida pelo raciocínio ingênuo de
um garoto, sem nenhum outro pré-requisito?
Remoendo estas idéias a professora se põe a pensar outras tantas coisas que
poderiam ser tão falsas e inconsistentes como as “causas” para o inverno e o verão:
- Porque tantas outras crianças aceitaram sem resistência o que eu
disse? Por que apenas o Joãozinho resistiu e não “engoliu”? No caso do verão e
do inverno a inconsistência foi claramente verificada. Era só pensar! Podemos
estar tão habituados a repetir as mesmas coisas que já nem nos damos conta de
que muitas destas coisas podem ter sido simplesmente acreditadas. Muitas destas
coisas podem ser simples “atos de fé” ou “crendices” que nós passamos adiante
como verdades científicas ou históricas: “atos de fé em nome da ciência”.
É
evidente que não pretendemos nem podemos provar tudo que dizemos ou tudo o que
nos dizem.
O
episódio do Joãozinho levantara um problema sério para a professora.
Que
bom que houve um Joãozinho!
Haverá
sempre um Joãozinho para levantar dúvidas?
Talvez alguns outros tenham também percebido e tenham se calado sabendo da
reprovação ou da repressão que poderiam sofrer com uma posição de contestação.
- E eu é que ia até me ofendendo com a atitude lógica e ingenuamente
destemida de Joãozinho, pensa a professora. Talvez a maioria dos alunos já
esteja “domada” pela escola. Talvez a escola esteja justamente fazendo o
contrário do que os professores pensam ou desejam. Talvez o papel da escola
tenha muito a ver com a passividade em relação aos problemas do mundo que nos
rodeia. Não terá isso também a ver com outro problema?
Todas
as crianças têm uma inata curiosidade para saber os “como” e “porquê” das
coisas, especialmente da natureza!
À
medida que a escola vai "ensinando", o gosto e a curiosidade vão se
extinguindo, chegando freqüentemente à aversão.
Quantas vezes as nossas escolas, não só a do Joãozinho, pensam estar tratando
da ciência por falar em coisas como átomos, órbitas, sinanteria, élitros,
mitocôndrias, interferon, nicho etc? Não são palavras difíceis que conferem à
fala do professor o caráter ou "status" de coisa
científica.