quinta-feira, 18 de abril de 2013

Joãozinho da Maré


O Joãozinho de nossa história é um moleque muito pobre que mora numa favela sobre palafitas espetadas em um vasto mangue.  Nosso Joãozinho só vai à escola quando sabe que vai ser distribuída merenda, uma das poucas razões que ele sente para ir à escola. Do fundo da miséria em que vive, Joãozinho pode ver bem próximo algumas das grandes conquistas de nossa civilização em vias de desenvolvimento (para alguns). Dali de sua favela, ele pode ver de perto uma das grandes universidades - onde se cultiva a inteligência e se conquista o conhecimento -, a UFRJ. Naturalmente esse conhecimento e a cultura ali cultivados nada têm a ver com o Joãozinho e outros tantos milhões de Joãozinhos pelo Brasil afora.
            Além de perambular por toda a cidade, Joãozinho costuma caminhar pelas pistas da Linha Vermelha, de onde pode ver o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Isso certamente é o que mais fascina os olhos de Joãozinho. Aqueles "grandes pássaros" de metal que sobem imponentes com um ruído de rachar os céus. Joãozinho, com seu olhar curioso e sonhador acompanha aqueles “grandes pássaros” até que, diminuindo de tamanho, desaparecem no céu. Talvez por frequentar pouco a escola, por gostar de observar os aviões e o mundo que o rodeia, o Joãozinho seja um sobrevivente de nosso sistema educacional. Joãozinho ainda não perdeu aquela curiosidade de todas as crianças, aquela vontade de saber o “como” e o “porquê”, especialmente em relação às coisas da natureza. Essa curiosidade e o gosto de saber se vão extinguindo em geral, com a frequência à escola. Não há curiosidade que aguente aquela “decoreba” sobre o corpo humano, por exemplo.
            Sabendo por seus colegas que nesse dia haveria merenda, Joãozinho resolve ir à escola. Nesse dia sua professora se dispunha a dar uma aula de ciências, coisa que o Joãozinho gostava. A professora havia dito que nesse dia iria falar sobre coisas como o Sol, a Terra e seus movimentos, verão, inverno etc.
A professora começa por explicar que:
- O verão é o tempo do calor;
- O inverno é o tempo do frio;
- A primavera é o tempo das flores e;
- O outono é o tempo em que as folhas ficam amarelas e caem.
            Em sua favela no Rio de Janeiro, Joãozinho conhece tempo de calor e de mais calor ainda. As flores da primavera e as folhas amarelas que caem ficam por conta de acreditar. Num clima tropical como o do Rio de Janeiro, Joãozinho não viu nem um tempo de flores. As flores por aqui existem ou  não, quase independentemente da época do ano. Mas Joãozinho, observador e curioso, resolve perguntar por que acontecem ou devem acontecer tais coisas. A professora resolve então dar a explicação:
- Eu já disse a vocês, numa aula anterior que a Terra é uma grande bola e que essa bola está rodando sobre si mesma. É sua rotação que provoca os dias e as noites. Acontece que quando a Terra está girando ela também está fazendo uma grande volta ao redor do Sol. Essa volta se faz em um ano. O caminho ou órbita que a Terra percorre ao redor do Sol é uma curva alongada chamada elipse. Além de essa curva ser achatada ou alongada, o Sol não está no centro. Isso quer dizer que em seu movimento, a Terra às vezes passa perto, às vezes passa longe do Sol.
- Quando passa mais perto do Sol é mais quente: é Verão.
- Quando passa mais longe do Sol recebe menos calor: é Inverno.
            Os olhos de Joãozinho brilhavam de curiosidade diante de um assunto novo e tão interessante.
- Professora, a senhora não disse antes que a Terra é uma bola e que está girando enquanto faz a volta ao redor do Sol?
- Sim, eu disse, responde a professora com segurança.
- Mas se a Terra é uma bola e está girando quase todo dia perto do sol, não deve ser verão em toda a Terra?
- É Joãozinho, é isso mesmo.
- Então é mesmo verão em todo o lugar e inverno em todo lugar ao mesmo tempo, professora?
- Acho que é Joãozinho, mas vamos mudar de assunto menino.
            A essa altura a professora já não se sentia tão segura do que havia dito. A insistência natural do Joãozinho já começava a provocar certa insegurança na professora.
- Mas, professora, insiste o garoto. Enquanto a gente está ensaiando na escola de samba, na época do Natal, a gente sente o maior calor, não é mesmo?
- É mesmo Joãozinho.
- Então nesse tempo é verão aqui?
- É Joãozinho.
- E o Papai Noel no meio da neve com roupas de frio e botas. A gente vê nas vitrines até as árvores com algodão. Não é para imitar a neve?        
- É, Joãozinho. Na Terra de Papai Noel faz frio.
- Então na Terra do Papai Noel, no Natal, faz frio?
- Faz, Joãozinho.
- Mas então tem frio e calor ao mesmo tempo? Quer dizer que existe verão e inverno ao mesmo tempo?
- É Joãozinho, mas vamos mudar de assunto. Você já está atrapalhando a aula e eu tenho um programa a cumprir.
            Mas Joãozinho ainda não havia sido “domado” pela escola. Ele não havia ainda perdido o hábito e a iniciativa de fazer perguntas, e querer entender as coisas. Por isso, apesar do jeito visivelmente contrariado da professora, ele insiste.
- Professora, como é que pode ser verão e inverno ao mesmo tempo em lugares diferentes, se a Terra que é uma bola, deve estar perto ou longe? Uma das duas coisas não está errada?
- Como você se atreve, Joãozinho, a dizer que a professora está errada? Quem andou pondo essas idéias em sua cabeça?
- Ninguém não, professora. Eu só “tava” pensando. Se tem verão e inverno ao mesmo tempo, então isso não pode acontecer porque a Terra “tá” perto ou “tá” longe do Sol? Não é mesmo, professora?
            A professora, já irritada com a insistência atrevida do menino, assume uma postura de autoridade científica:
- Está nos livros que a Terra descreve uma curva que se chama elipse ao redor do Sol, que essa ocupa um dos focos e, portanto, ela se aproxima ou se afasta do Sol. Logo, deve ser por isso que existe verão e inverno.
            Sem se dar conta da irritação da professora nosso Joãozinho lembra-se da sua experiência diária e acrescenta:
- Professora, a melhor coisa que a gente tem aqui na favela é poder ver avião o dia inteiro.
- E daí, Joãozinho? O que isso tem a ver com verão e inverno?
- Sabe professora, eu achei que tem. A gente sabe que um avião “tá” chegando perto quando ele vai ficando maior. Quando ele vai ficando pequeno é porque ele está ficando mais longe.
- E o que isso tem a ver com a órbita da Terra, Joãozinho?
- É que eu achei que se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente devia ver ele maior. Quando a Terra estivesse mais longe do Sol, ele deveria parecer menor, não é professora?
- E daí menino?
- A gente vê o Sol sempre do mesmo tamanho. Isso não quer dizer que ele “tá” sempre na mesma distância? Então verão e inverno não acontecem por causa da distância da Terra ao Sol!
- Como você se atreve a contradizer sua professora, Joãozinho? Quem anda pondo essas “minhocas” na sua cabeça? Faz quinze anos que eu sou professora. É a primeira vez que alguém quer mostrar que a professora está errada.
            A essa altura, a classe se havia tumultuado. Um grupo de outros garotos já havia percebido a lógica arrasadora do que o Joãozinho dissera. Alguns continuavam indiferentes. Outros aproveitaram a confusão para aumentá-la. A professora havia perdido o controle da classe e já não conseguia impedir a bagunça nem com ameaças de repressão.
Em meio àquela confusão tocou o sinal para o fim da aula, “salvando” a professora de um caos maior. Não houve aparentemente nenhuma definição de vencedores e vencidos nesse confronto. Indo para casa, a professora ainda agitada e contrariada se lembrava do Joãozinho que lhe estragara a aula e o dia. Além de pôr em dúvida o que ela afirmara, o Joãozinho ainda deu um “mau exemplo”. Joãozinho com seus argumentos ingênuos mas lógicos, despertou muitos para o seu lado.
- Imagine se a moda pega, pensa a professora. O pior é que não me ocorreu qualquer argumento que pudesse "enfrentar" a argumentação do garoto.
- Mas foi assim que me ensinaram. E é assim mesmo que eu ensino, pensa a professora. Faz tantos anos que eu dou a mesma aula sobre este mesmo assunto!
            À noite, mais calma, a professora pensa com os seus botões:
- Os argumentos de Joãozinho foram tão claros e ingênuos! Se o inverno e o verão fossem provocados pelo maior ou menor afastamento da Terra em relação ao Sol, deveria ser inverno ou verão em toda a Terra. Eu soube que enquanto é verão em um hemisfério, é inverno no outro. Então tem mesmo razão o Joãozinho. Não pode ser esta a causa do calor e do frio na Terra. Também é absolutamente claro e lógico que se a Terra se aproxima e se afasta do Sol, este deveria mudar de tamanho aparente. Deveria ser maior quando mais próximo e menor quando mais distante.
- Como eu não havia pensado nisto? Como posso ter “aprendido” coisas tão evidentemente erradas?
- Como não me ocorreu alguma dúvida sobre isso?
- Como posso eu estar durante tantos anos “ensinando” uma coisa que eu julgava ciência, e que pode ser totalmente demolida pelo raciocínio ingênuo de um garoto, sem nenhum outro pré-requisito?
            Remoendo estas idéias a professora se põe a pensar outras tantas coisas que poderiam ser tão falsas e inconsistentes como as “causas” para o inverno e o verão:
- Porque tantas outras crianças aceitaram sem resistência o que eu disse? Por que apenas o Joãozinho resistiu e não “engoliu”? No caso do verão e do inverno a inconsistência foi claramente verificada. Era só pensar! Podemos estar tão habituados a repetir as mesmas coisas que já nem nos damos conta de que muitas destas coisas podem ter sido simplesmente acreditadas. Muitas destas coisas podem ser simples “atos de fé” ou “crendices” que nós passamos adiante como verdades científicas ou históricas: “atos de fé em nome da ciência”.
            É evidente que não pretendemos nem podemos provar tudo que dizemos ou tudo o que nos dizem.
            O episódio do Joãozinho levantara um problema sério para a professora.
            Que bom que houve um Joãozinho!
            Haverá sempre um Joãozinho para levantar dúvidas?
            Talvez alguns outros tenham também percebido e tenham se calado sabendo da reprovação ou da repressão que poderiam sofrer com uma posição de contestação.
- E eu é que ia até me ofendendo com a atitude lógica e ingenuamente destemida de Joãozinho, pensa a professora. Talvez a maioria dos alunos já esteja “domada” pela escola. Talvez a escola esteja justamente fazendo o contrário do que os professores pensam ou desejam. Talvez o papel da escola tenha muito a ver com a passividade em relação aos problemas do mundo que nos rodeia. Não terá isso também a ver com outro problema?
            Todas as crianças têm uma inata curiosidade para saber os “como” e “porquê” das coisas, especialmente da natureza!
            À medida que a escola vai "ensinando", o gosto e a curiosidade vão se extinguindo, chegando freqüentemente à aversão.
            Quantas vezes as nossas escolas, não só a do Joãozinho, pensam estar tratando da ciência por falar em coisas como átomos, órbitas, sinanteria, élitros, mitocôndrias, interferon, nicho etc? Não são palavras difíceis que conferem à fala do professor o caráter ou "status" de coisa científica.          

2 comentários:

  1. Caramba! Que texto legal, Thainá! Gostei muito!
    Legal vc ter compartilhado conosco!

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  2. Ahhh, quantos Joõezinhos são calados nas escolas, não è? E quantos precisam existir para que os professores assumam suas incertezas, revejam suas verdades e façam um outro e significativo currículo. Bela história!Obrigada por compartilhar isso conosco.

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